O homem costantemente é lançado de volta para si mesmo

O importnte é compreender, escrever é uma questão de buscar essa compreensão.

sexta-feira, 4 de março de 2022

O canto do passarinho

Gosto de olhar pela janela e ver as arvores na rua. Eu deixo a cortina levemente fechada estrategicamente todos os dias para isso, ver apenas as arvores tocarem o céu, as vezes azul, as vezes cinza, mas é o mesmo céu. Assim eu imagino que estou em outro lugar, mais limpo, mais puro, mais belo. É essa necessidade de uma parte que mora em mim de não ver além das cortinas. 
 Todos os dias de manhã eu gosto de sentar a janela e ouvir o canto dos pássaros, fico imaginando como eles são, suas cores, formatos de penas e bicos. Eu gosto de passarinhos, eles são tão livres, podem voar.
 Um dia estava repetindo minha rotina matinal de ouvir o canto dos pássaros e imaginá-los lindos e livres. Foi quando surgiu na minha mente uma ideia: encontrar cada pássaro que ali cantava. Comecei a procurar, procurar, procurar atentamente entre as arvores. Mas só encontrava algumas rolinhas com cantos desafinados. Achei estranho o canto daquele pássaro, não era como imaginava, parecia desafinar como buzinas de carros impacientes. Estariam os pássaros mudando seu canto por estarem em uma cidade suja e esburacada? Continuei a procurar pelos outros, aqueles pássaros que gostava de ouvir seu canto toda manhã. Procurei, procurei e nada achei. Olhei para o outro lado em direção as casas e como se todo o encanto se quebrasse da forma mais bruta e fatal avistei um viveiro cheio de passarinhos aprisionados, iguais a mim nesse “apertamento”. Uma mistura de frustação com raiva me tomou, como poderia agora imaginar todas as manhãs pássaros lindos e livres entre as arvores e céu, sabendo da verdade?
 A verdade era seca, chegava a doer. Eram passarinhos presos em um viveiro minúsculo, comendo ração, bebendo água suja. Na verdade, o canto que eu admirava e achava lindo era um pedido de socorro. Tive uma ideia: libertar os passarinhos. O plano era simples, a noite eu iria até a rua pulava o muro daquela casa e libertaria todos os pássaros do viveiro, em seguida quebraria o viveiro todo e seria presa por invasão de propriedade. Perfeito!! O que foi? Você está rindo? Parecia um plano perfeito na minha cabeça. 
Certo, vamos pensar de outra forma... 
Tive uma nova ideia: todas as noites eu irei pular o muro daquela casa, irei até o viveiro e vou soltar um passarinho a cada noite, assim os donos do viveiro não vão perceber, e depois que eu libertar todos os passarinhos... eu destruo o viveiro e sou presa por invasão de propriedade. Tudo bem, essa ideia foi uma merda. 
 Já sei o que fazer: vou até a casa, toco a campainha e falo educadamente: - Bom dia, senhor, senhora, você, todes. Seria possível libertar todos os passarinhos que vocês em uma atitude banal aprisionaram e destruíram as minhas manhãs? Eu imaginava que eles cantavam livremente, até descobrir a verdade: a porra desse viveiro. Posso entrar e destruir ele completamente?
 Perfeito!! Obrigada por me ajudarem a chegar a essa solução genial!! Vou lá amanhã, ou depois, outro dia. Vou amanhã e ponto final, darei um fim a essa história. Na manhã seguinte, me disfarcei para seguir o plano genial que havia tido, libertar os passarinhos e salvar as minhas manhãs!! Coloquei óculos escuros, uma peruca rosa, vestir uma roupa qualquer, na verdade era um pijama com um xale, não tive ideia melhor, e fui. As 6h da manhã eu estava cumprindo a minha missão de salvar todas as manhãs.
 Toquei a campainha. Uma senhora (muito fofa a miserável) atendeu a porta. Eu disse: 
- Bom dia. (com raiva e pensando: tinha que ser uma senhora? Não poderia ser um daqueles caras barbudos e com uma arma na mão, estilo caçador para tornar meu ato mais heroico?). 
- Bom dia, minha filha. Você está bem? 
- Não, não estou bem? - Precisa de ajuda? Você se perdeu? 
- Não, estou bem, eu sou assim mesmo. 
 - Já tomou café? Gostaria de entrar?
 - Não!! Sim, não tomei café e gostaria de entrar. (para libertar os passarinhos que você velha escrota aprisionou).
 - Pode entrar minha filha. Meus filhos já foram todos embora sabe, nenhum mora mais comigo, eu fico sozinha nessa casa grande. Todas as manhãs eu preparo uma mesa e fico imaginando que alguém vai tocar a campainha para tomar café comigo. Eu imagino isso há muitos anos minha filha, e olha você veio. Um pouco diferente do que eu imaginava, com esses óculos, essa peruca estranha e de pijama. Hauhaua mas você veio, eu achava que isso era uma loucura da minha cabeça, sabe? Coisa de gente idosa minha filha. Senta. Quer um pedacinho de bolo? 
- Sim, obrigada. 
 - Café ou chá? 
- Café, sem açúcar... 
- E sem leite... 
- sim. 
- Eu também gosto de tomar café assim. Você me lembra uma pessoa... 
- Esse som de passarinhos vem de onde? 
- ah... os passarinhos. Quer conhecer? É um viveiro. 
- EU SEI!! EU VI.... da janela da minha casa. 
- Foi? Onde você mora? 
- Naquele prédio. 
- Minha vizinha!! Que maravilha, nunca te vi por aqui. Venha, vou te mostrar. 
- Estou LOUCA para ver. - Você gosta de passarinhos? - Bastante!! 
- Eu também. 
 - Sei. A gente consegue perceber... 
- Eu sou veterinária, me especializei em aves. Trabalhei durante muitos anos no zoológico, agora estou aposentada, mas não consigo ficar longe dos bichinhos. Vou te explicar como funciona esse viveiro. Aqui eu cuido dos passarinhos que estão doentes, dou comida, cuido das feridas, quando eles se recuperam eu solto de volta na natureza, mas nem todos conseguem voltar a liberdade, alguns não conseguem mais voar, esses eu cuido para todo e sempre, eles ficam aqui. As pessoas já sabem, trazem tudo quanto é tipo de passarinhos para que eu possa cuidar. Hoje eu vou soltar alguns, quer me ajudar?
 - Eu... ajudar a senhora? 
- Sim. Não é todo dia que nossos sonhos mais loucos se realizam, de uma forma bem diferente do que imaginamos, é bem verdade, mas se realizam. 
- É que... claro, eu ajudo a senhora. 

E foi assim que eu consegui recuperar as minhas manhãs, quando eu conheci a verdade por completo, não uma parte que eu imaginava ser.